A antropologia da nudez involuntária
- Gabriela P. Bonomi Z.
- há 59 minutos
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Depois de 16 anos voltei a nadar de verdade. E quando digo “de verdade”, não é aquele mergulho preguiçoso de férias, em piscina de hotel. É maiô, touca, óculos apertando a cara e uma raia olímpica de 50 metros. Só de sentir o cheiro do cloro já voltei no tempo: fui direto para a escola, quando treinava a semana inteira e passava os finais de semana em competições que eu adorava e odiava na mesma medida. Amava o silêncio debaixo d’água, aquele momento em que o mundo todo desaparece e só sobra a sua respiração. E tinha também o detalhe irônico: eu era campeã no nado de costas — justamente a modalidade que eu mais odiava.
Entrar na piscina agora, depois de tanto tempo, foi como pedalar uma bicicleta abandonada na garagem: o corpo hesita na primeira curva, mas logo lembra o caminho. As braçadas estavam todas lá, escondidas debaixo da pele. A respiração encaixou no segundo comprimento. As viradas, automáticas. É como dançar uma coreografia que você não ensaia há mais de uma década, mas que, quando a música toca, sai inteira. Uma memória que o corpo guarda sozinho.
Nadei uma hora inteira sem parar. E saí da piscina leve, quase eufórica, pensando: pronto, estou de volta. Tinha até esquecido que nadar cansa mais o ego do que o corpo.
E então veio a segunda parte da experiência: o balneário.
Atravessei o corredor molhado, já gelada, toalha nos ombros, e fui atrás dos duches. Não havia portas, nem cortinas, nem divisórias. Só um quadrado enorme de azulejo branco, iluminado por luz forte. E lá dentro, duas mulheres tomavam banho nuas, lado a lado, tranquilas, conversando como quem toma café numa esplanada. Eu congelei na entrada. A última vez que tinha ficado nua em frente a desconhecidos foi no parto do meu filho mais novo. E antes disso, no parto do mais velho. Ou seja, meu público nu era muito restrito — e muito específico.
Enquanto ligava a água, ainda de maiô, meu olhar fez o que sempre faz: comparou. Em cinco segundos já tinha escaneado tudo. A barriga delas parecia menos flácida que a minha, os seios estavam mais no lugar, os bumbuns mais firmes, a pele bronzeada com cara de verão bem aproveitado. Tudo isso numa análise relâmpago de quem nasceu e cresceu no Brasil — lugar onde o corpo feminino é um projeto de engenharia e a avaliação é constante, pública e sem direito a recurso.
Respirei fundo, tirei a parte de cima do maiô e comecei a lavar o cabelo, virada para a parede. Fingindo naturalidade, mas petrificada de vergonha. Não tive coragem de tirar a parte de baixo. O maiô virou uma espécie de colete salva-autoestima. Enquanto isso, elas seguiam ali, livres, soltas, rindo, falando sobre sei lá o quê — corpos longe da perfeição, com marcas do tempo, da vida, mas sem pedir desculpa a ninguém. E eu, a mais nova das três, me senti acabada. Com um corpo “inapropriado”. Um corpo que carrega duas gravidezes, dois partos, duas vidas — as duas mais preciosas de todas, mas que, diante do reflexo do balneário, parecia só um corpo gasto.
Depois, já no vestiário, tentei disfarçar meu interesse, mas observei tudo. A marca do creme que passavam - e quais partes do corpo escolhiam passá-lo. O jeito meticuloso de secar o cabelo. O tipo de calcinha e sutiã que usavam. Como se houvesse ali uma espécie de manual secreto de self-care para mulheres mais velhas, confiantes, que já aprenderam a lidar com a própria pele. Eu queria absorver tudo.
E sabe de uma coisa? Assim que vesti minha própria lingerie, minha roupa, passei meu perfume e arrumei o cabelo rápido, a chavinha virou. De repente, me senti bonita de novo. Confortável. Confiante. O tipo de confiança que vem não da comparação, mas da forma como você escolhe ser vista pelo mundo.
Foi então que chegaram as miúdas de vinte e poucos anos, colágeno bombando, pele lisa, tudo no lugar. Sorri sozinha. Um dia também fui assim — e nem percebi. Hoje sou outra: com o corpo mais marcado, mais vivido e, pelo menos, com boas histórias para contar.
Beijinhos,
G.
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